Estado e ONGs na Bolívia

     Guerra da água, guerra do gás, marchas de indígenas, protestos de cocaleiros, mineiros desfilando com dinamites, longos bloqueios de estradas…estas são cenas que caracterizam a Bolívia nesses tempos recentes de mobilização de que já falei aqui. Tudo isso representa só a ponta do iceberg de processos centenários de resistência popular. Em tempos recentes, essas lutas se orientaram à rejeição às políticas neoliberais e às novas modalidades de colonização de seu povo e território. Do caldo político oriundo dessa reação é que surgiu a possibilidade de instaurar um “proceso de cambio” cujo importante marco é a chegada do MAS-IPSP ao poder estatal.

            Em grande parte foi a população organizada cotidianamente que viabilizou o MAS-IPSP enquanto alternativa eleitoral. A partir das ruas, dos sindicatos, de grupos organizados, das articulações nas praças, nas comunidades campesinas é que a vitória de Evo se tornou possível. Posso até estar idealizando um pouco um processo que não vivi, mas creio que só a mobilização popular é capaz de explicar a drástica mudança que representa a vitória de um grupo político tão indigesto para as oligarquias bolivianas.

            Uma importante pergunta acerca desse processo é: depois de cinco de anos no poder, como anda o nível de mobilização e as formas de organização populares? Foi todo mundo trabalhar no governo? Tá todo mundo ainda constantemente ocupando as ruas e as praças? Nesse mês que estive lá, sempre encontrava nos jornais alguma notícia de protestos e assembléias ocorrendo em algum lugar por algum motivo. Uma ou outra vez cheguei a presenciar movimentações nas ruas. Mas acredito que de modo geral, pelo que me contaram alguns bolivianos, as coisas agora estão menos movimentadas.

            Por bem ou por mal, não vivenciei uma Bolívia fervendo em assembléias nas praças e em ruas tomadas. Pelo lado negativo, isso pode denotar que a mobilização está em descenso e que aqueles que faziam algo estão voltando para suas vidas normais à espera que aqueles militantes que foram incorporados pelo mundo da política profissional e da burocracia resolvam tudo agora. Pelo lado positivo, o cenário que encontrei pode estar relacionado com o fato de que a mobilização continua ocorrendo, mas de outras formas agora, menos espetaculares e reativas e mais contínuas e propositivas.

            Algo que pude perceber facilmente é como as bolivianas e os bolivianos estão bem por dentro da história recente e a atual situação política de seu país. Nas conversas com diferentes pessoas seja numa reunião de ativistas seja num passeio na feira ou numa viagem de ônibus, senti que as pessoas se interessam e acompanham os acontecimentos políticos do país. Para além disso, no entanto, o dia-a-dia nas cidades me pareceu, de modo geral, bem alienante em termos de particpação da população em geral nas decisões coletivas que dizem respeito à sua vida. Dos poucos dias que passei distante dos centros urbanos e das coisas que escute sobre a realidade do campo, me pareceu factível pensar que, em muitos lugares de comunidades campesinas e/ou de povos originários, uma vida mais comunitária calcada em costumes antigos possa estruturar uma participação mais cotidiana e direta das pessoas na gestão das coisas coletivas. Nas cidades, os redutos populares preservam ao seu modo resquícios de uma vida mais comunitária. Relembro aqui um pouco a descrição que fiz acima dos espaços de Cochabamba e também de sua praça central. Voltando à realidade urbana, que pude vivenciar por mais tempo, para além desses resquícios de vida comunitária e da existência de uma razoável rede associativa – com a presença de um grande número de organizações sindicais[1] de outras entidades – o cotidiano urbano me pareceu tão alienante como em qualquer outro lugar. As deliberações políticas no dia-a-dia continuam aprisionadas ao domínio dos políticos profissionais e dos burocratas. A democracia representativa parece manter sua hegemonia em relação às outras formas de democracia – a participativa e a comunitária – de que fala o novo texto constitucional boliviano.

            O impacto das mudanças que ocorreram no campo das regras de participação política e autonomia territorial, ao menos nos centros urbanos, não parece ter abalado a centralidade do jogo representativo-eleitoral em relação a outras formas de relacionamento da sociedade com o Estado. Mesmo sustentando essa idéia, não poderia deixar de fazer três ressalvas ao meu argumento precedente de que a democracia representativa mantém sua centralidade. Primeiramente, a atual organização política-territorial oferece importantes instrumentos de descentralização política. Há diferentes mecanismos de autonomia que podem ser ativados por vontade popular, mediante referendo, da população de um determiando território aproximando das pessoas o poder político. Em segundo lugar, pelas novas leis da Bolívia – apesar de eu não ter pesquisado como era antes –, uma grande diversidade de cargos públicos é ocupado por vias eleitorais. Assim, não só os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo são escolhidos por sufrágio universal, mas também os principais magistrados do Poder Judiciário[2] e outros cargos. Por fim, em terceiro lugar, nos últimos anos, o povo boliviano foi diretamente consultado para ratificar ou rejeitar uma série de medidas e a Constituição obriga a realização de referendo para aprovar qualquer reforma constitucional.

            Fora do campo estatal, percebi que há uma grande quantidade de ONGs desenvolvendo todo tipo de trabalho. Seria impossível sugerir uma avaliação geral do papel que desempenham por que cada uma dessas organizações têm sua própria visão de mundo e suas finalidades. Muitas ONGs recrutaram parte das energias da mobilização popular – pessoas e causas – para seu âmbito, em formas mais institucionalizadas de engajamento político. Escutei de alguns colegas ativistas – entre eles um ou outro que se sustenta trabalhando para ONGs – críticas que logo simpatizei ao lembrar do papel de muitas ONGs no Brasil. Em sua forma de se financiar, essas organizações, que normalmente não geram riquezas próprias, se baseiam em “patrocinadores” e na disputa de projetos que acabam por moldar com o tempo seus fins e seu modo de trabalhar. Em sua forma de gestão, geralmente reproduzem um tipo de gestão empresarial, seja numa perspectiva mais ortodoxa seja num jeito mais moderninho. Essas organizações podem propor para si mesmas e seus funcionários a defesa de importantes causas, inovadoras abordagens de problemas políticos, bons argumentos técnicos e formas eficazes de acesso aos espaços de poder institucional… mas não carregam em seu modo de se gerir e de se financiar nada muito além de uma organização integrada, reprodutora e dependente de um modo de vida circunscrito pelas estruturas do mercado e do Estado numa sociedade capitalista. Assim, as ONGs podem ser uma forma valorosa e eficaz de assistência material, suporte técnico e apoio político em muitas comunidades e para muitas causas, mas não podem querer assumir o papel de organizações de base com potencial de resgatar ou gerar relações sociais dissonantes daquelas propostas nas novas formas de colonização.

            Relato aqui algo que me parece que infelizmente pode se constituir como um teto ao “proceso de cambio”: o fato dele passar a ser impulsionado a partir das estruturas representativas e burocráticas do Estado e também pela ONGs. Esses espaços podem ser usados para apoiar e fortalecer o processo, mas não podem encabeçar as transformações históricas na sociedade. Não tenho clareza de que tipos de instrumentos de organização do povo podem avançar mais no processo de constituição do poder popular, no resgate das culturas e na produção de novos modos de vida. Não acredito, no entanto, que se os recentes impulsos históricos de mobilização na Bolívia foram canalizados para o âmbito do Estado e das ONGs a tão dita “descolonização” vá muito longe.


[1] Por sinal, o nome sindicato na Bolívia parece ser utilizada de uma forma mais indiscriminada do que aqui no Brasil. Lá se refere a uma grande diversidade de formas associativas, para além da forma de organização para a defesa de interesse de uma categoria de trabalhadores. Assim há sindicatos de motoristas, de trabalhadores urbanos…. e há também, por exemplo, sindicato de mulheres, sindicato de homens….

[2] São eleitos por sufrágio universal, respeitados determinados pré-requisitos, os juízes do “Tribunal Constitucional Plurinacional”, do “Tribunal Supremo de Justicia”, do “Tribunal Agroambiental” e os membros do “Control Administrativo Disciplinario de Justicia”

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