As cholas: um símbolo de resistência cultural

Conheci muitos tipos diferentes de bolivianas e bolivianos. Tive a oportunidade de interagir com trabalhadores urbanos, repesentates sindicais, mulheres campesinas, mineiros, estudantes universitários, militantes da causa indígena, entre outras e outros. Para além dos ambientes dos alojamentos e de lugares turísticos, que te colocam em contato mais com estrangeiros, é no caminhar nas ruas, nas feiras, nos restaurantes, nas praças das cidades que se tem a oportunidade de conversar com bolivianas e bolivianos de diferentes realidades.

Esses contatos que são sempre muito ricos, representam uma forma de fugir do papel de turista, que não se interessa por conhecer como a Bolívia é para seu povo. É dificil estabelecer uma relação de diálogo, de troca – e não de exotização –, ainda mais numa viagem de somente um mês. Nas ruas percebi coisas como a influência da vida campesina em boa parte da população e a forte presença até hoje de elementos das culturas originárias, como o uso das línguas quechua e aymara. Outra coisa também que destacaria é que há relevantes diferenças nos costumes entre os bolivianos de diferentes regiões e descendentes de diferentes grupos étnicos indígenas.

Dentre alguns retratos do povo boliviano que me chamarama a tenção, destacaria: os trabalhadores de minas que conheci em Pasto Grande, acostumados a mascar folha de coca, bebendo alcool puro e fumando cigarro antes de exercer seu trabalho árduo e perigoso; as lideranças indígenas que vi em La Paz, com seus ponchos coloridos e o orgulho de destoar daquela paisagem cinzenta e pretensamente moderna das cidades grandes; os engraxates também em La Paz que indistintamente trabalham com os rostos cobertos por passa-montanhas para se protegerem do frio e vergonha por exercerem um trabalho considerado de segunda categoria; os estudantes universitários, que………… nada tem de particular – em seu afã de originialidade e sofisticação, me parecem impressionantemente iguais em qualquer canto do mundo, portando um visual da moda como se fossem algo além de um mero produto de uma indústria cultural de massa –. Mas, de todos os retratos do povo boliviano, o que mais me cativou, foi o das cholas. Aquelas mulheres que comumente se encontra na Bolívia usando suas roupas tradicionais.

Em todos os lugares da Bolívia que conheci me deparei com essas apaixonantes figuras. Em cada região, as cholas têm suas particularidades. As de La Paz, por exemplo, têm seus chapeuzinhos que mal cabem na cabeça e as de Cochabamba usam saias mais curtas e chapéus floridos tipo praieiro. De comum entre os diferentes estilos de chola de cada região, creio que há os fortes traços indígenas e as longas tranças. Essa imagem das cholas não está presente nas representações femininas da elite. Não me lembro de ter visto nenhuma mulher na TV com roupa de chola ou alguém numa boutique cara de Santa Cruz de la Sierra com essas roupas. Muito além da exuberância de seu visual, essas mulheres representaram para mim uma mensagem profunda sobre a Bolívia.

Não são figuras folclóricas do passado ou de lugares distantes. Não estão vestidas assim para gringo tirar foto. São parte importante da realidade campesina e também da paisagem urbana. Até o momento em que estava escrevendo este texto, não sabia dizer nada da origem de suas vestimentas. Num blog de uma galera mochileira descobri um trecho interessante do livro de Eduardo Galeano que descreve o fato de que na verdade a roupa das cholas não é algo que descende das culturas originárias. Mais do que isso, em algum momento o termo chola descrevia um negativo distanciamento das mulheres em relação às suas origens indígenas[1]. A despeito disso, é inegável que atualmente as cholas são, em muitos aspectos, uma expressão de orgulho das origens indígenas e campesinas e em suas práticas preservam elementos de outras formas de viver dissonantes das modernas sociedades capitalistas. É nas cholas que acho que se representa o fato de que o povo boliviano não está totalmente imerso nos padrões estéticos, nas imposições de consumo – enfim, no conjunto de valores e padrões de comportamento – da dita “vida moderna”. Uma comunidade indígena numa área isolada pode ter seu modo de viver mais preservado, mas é em figuras como as cholas que se apresenta com maior intensidade a necessida de ao mesmo tempo se misturar e resistir às imposições das novas e velhas formas de colonialismo.

Em suas costas, levam portam um awayo. Este é uma espécie de pano grande, grosso e sempre muito colorido que, dobrado, se torna um mochilão. Em seus pesados awayos, as cholas podem carregar um pouco de tudo: seus filhos, sua colheita, mecadorias pra vender ou trocar, coisas para viajar… São “farofeiras” no melhor sentido da palavra. Se precisar, abrem seu awayo tiram uma boa comida e ainda usam o mesmo para forrar o chão sentar e comer. Com um awayo, são mais auto-suficientes do que os gringos que chegam com mochilões caros e quinquilharias sofisticadas. Em seu pano colorido carregam, portanto, sua autonomia. Virtude esta, que a cidade moderna está sempre tentando nos roubar, porque mesmo para as necessidades mais elementares somos cada vez mais dependentes de uma carimbo oficial ou de uma prestação de 3x sem juros.

Muitas cholas, também, se comunicam entre elas em línguas originárias. Isso pode passar despercebido por que não saem falando com todo mundo em idiomas indígenas. Mas, entre iguais, em lugares mais populares da cidade, é frequente conversas nos códigos locais. Em Cochabamba, é forte o quechua e, na região de La Paz, o aymara. Dessa forma também preservam identidades culturais, pois a partir dessas línguas ajudam a manter vivos conceitos sobre o mundo que, mesmo quando adaptados ao castelhano, não se integram à maneira de pensar imposta pelos colonizadores. Isso me explicavam uns colegas bolivianos sobre conceitos autóctones que até hoje são bem populares como o de Ayni, que é uma espécie de princípio de reciprocidade bastante associado a um sistema de vida comunitária.

Assim que, em sua mescla e resistência com a colonização, as cholas são um importante símbolo da Bolívia. Mais do que nas políticas de governos progressistas, mais do que nos profundos argumentos de acadêmicos, mais do que nos fascinantes discursos de lideranças, mais do que no potencial de rebeldia dos jovens…. é vislumbrando o cotidiano de figuras como as cholas que se pode gestar na prática uma descolonização voltada para desenvolver outras formas de se relacionar com a inevitável realidade urbano industrial. De forma silenciosa, diária e cheia de cores essas mulheres sabotam aquele imaginário de sofisticação e modernidade que move a sociedade de consumo.


[1]    No blog Trotamerica alguns colegas mochileiros transcreveram uma parte do clássico livro as ‘Veias Abertas da América Latina’, de Eduardo Galeano, onde se fala do vestuário das cholas: “… a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos II em fins do século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram as índias a usarem eram calcados nos vestidos regionais das camponesas espanholas da Extremadura, Andaluzia e país basco, e o mesmo ocorre com os penteados das indígenas repartidos ao meio, impostos pelo vice-rei Toledo.” Não mais transcrevendo o livro de Galeano, se comenta também no blog: “O termo ‘chola’ no início tinha uma conotação pejorativa e se referia às mulheres nativas aimarás que, ao se mudarem para a cidade grande, esqueciam as tradições e costumes de seus antepassados e se rendiam ao estilo de vida dos mestiços urbanos. Hoje esse visual está relacionado ao orgulho que essas mulheres tem de sua identidade indígenas.”

5 Respostas to “As cholas: um símbolo de resistência cultural”

  1. Rafael Vilela Pira Says:

    Ótimo texto companheiro! obrigado pela citação ao Trotamérica.
    Passaremos a acompanhar também seus escritos.

    Forte abraço,

    Rafael Vilela

    • arturbsb Says:

      Valew Rafael pelo contato !
      Estava mesmo querendo entrar em contato com vcs do Trotamerica para parabenizá-los pelo conteúdo do blog de vocês.
      Eu já toh de volta à minha vida em Brasília.
      Espero que ainda estejam viajando e conhecendo e compartilhando informações sobre essa maravilhosa América Latina.
      Um grande abraço pra tod@s vocês, parabéns pela qualidade do blog de vcs e manda um parabéns especial para a Anninha pelas fotos dela q estão muito belas.

  2. Says:

    “para se protegerem do frio e vergonha por exercerem um trabalho considerado de segunda categoria”

    Não consideram seu trabalho vergonha. É para se protegerem do forte cheiro dos químicos que usam para engraxar os sapatos. Cuidado.

  3. Felipe Says:

    Muito bom texto! Obrigado por compartilhar!
    Acabei de chegar de uma viagem de um mês e, embora, eu tenha feito muitos passeios de “gringo”, já que um mês por três países nos torna bem limitados na imersão profunda de certa cultura, eu me encantei demais com o símbolo de resistência e preservação de uma cultura e identidade que representam as cholas!

    Gostei de tuas palavras, das quais já peço licença pra compartilhar em rodas de conversa por aí a fora… e a procurar… rs

    Um forte abraço!

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